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Alta Via della Val Tartano

Uma jornada de 39 km em três dias de trekking pelas montanhas Alpinas da região de Sondrio, Lombardia — Italia.


A região de Sondrio abriga um dos vales mais fascinantes da Lombardia, o Vale Tartano, no centro dos Alpes Italianos, em dias bons, o Lago Como no horizonte.



dia zero  —  Tartano 

Antes de iniciar esta viagem já tinha planos definidos para as montanhas. Pesquisei alguns trilhos locais, outros pelo Wikiloc e, juntando os trapos, fiz um loop de 3 dias de trekking em autonomia pela Valtellina, Alpes Italianos. Ainda não tinha aquecido o banco do único café da aldeia de Campo Tartano e já tinha deitado os planos pelo cano.

Ofereceram-me um mapa acabadinho de editar pela região da Lombardia com trilhos de alta montanha criados por montanheiros locais com base nas rotas ancestrais do quase extinto pastoreio alpino sazonal. O trilho passa exactamente por Frasnìi, um pequeno aglomerado de casas de montanha onde somos gentilmente recebidos pela Fausta e o Silvio, donos da cabana de montanha que será a nossa base. “Alta Via della Val Tartano” é o nome do trilho. E soa tão bem.


 

dia um   —  Tartano  >  Laghi di Porcile 

Com a aldeia de Tartano pelas costas, mergulhamos numa floresta densa de pinheiros nórdicos que nos vai acompanhar nos próximos 7km. É uma subida de ziguezagues por trilhos íngremes e pouco pisados, onde a vegetação alta molha as nossas pernas com o orvalho que o sol ainda não teve tempo de secar. A temperatura ronda os 23°C e está perfeita para caminhar os 900m de altitude que nos separam do almoço, no Bivacco Aldo e Sergio Gusmeroli (1865m). Estava oco de gente, mas farto em vacas e um cavalo. Foi o local perfeito para descansar, secar a roupa molhada pelo suor e comer como se não houvesse amanhã: pasta bruta di campo com a melhor charcutaria que os nossos anfitriões de Frasnìi fizeram questão de nos enfiar na mochila. Ciao, vaca invasora! Arrivederci, cavalo papa-sugar!

A tarde prometia um longo caminho com o sol a bater na cabeça bem menos fresco do que nos interessava. Os cursos de água eram frequentes e valia tudo para refrescar. Não falta água nestes montes, que há umas boas dezenas de anos deixaram de ver estes campos de pastagem alpina com as “baitas”  —  como eles chamam as casas de montanha  —  com famílias onde, no verão, o pastoreio era a actividade central. Agora são ruínas de pedra, sem vida e baixas perspectivas para um novo fim. O trilho, apesar de pouco íngreme, tem muita pedra e uma inclinação que nos punha a caminhar em itálico, o que maltrata os pés com o passar dos quilómetros  —  valeu-me longas noites de estágio nos bares da Bica, em Lisboa.

A vegetação é cada vez mais escassa, a rocha mais frequente e, cada vez que olhamos para trás, o Vale ganha mais imponência. O sol já não vai muito alto, mas aproxima-se o fim da última encosta da montanha que nos leva ao Laghi di Porcile (2050m) o que, para nós, será casa por uma noite. A tenda montada e o jantar preparado apareceram num ápice ou a velocidade furiosa possível no acto de cortar nacos de carne fumada com um micro canivete cata-grilos  —  pois a chuva ameaçava chegar e queríamos aproveitar a última réstia de luz para trincar o repasto com vista desafogada. Às tantas, em lusco-fusco uma raposa passa à frente dos nossos olhos para desejar boa noite. Boa noite!

 

dia dois | Laghi di Porcile  -  Passo di Porcile   -  Cima de Lemma   -  Alpe Budria  -  Baita

Lago: 46°03′48.62″N 09°39′45.64″E

11km • 6h • 1420D+

Os Laghi di Porcile são um grupo de três lagos alpinos no Val Lunga, que contêm as águas pluviais provenientes do derretimento das neves do Monte Cadelle, Passo di Porcile, Monte Valegino e Valle dei Lupi, estando ligados por um caminho a pique até ao Passo del Tartano. São 6:30am, chove a potes lá fora e, dentro da tenda, o impulso mais dinâmico da próxima hora é virar o lombo ao contrário e ajeitar o saco-cama para não entrar frio. Quem manda aqui é a mãe natureza e o que ela diz é para fazer wild ronha. É o que fazemos! A intempérie parece não querer fazer sala, foge para dar espaço ao sol, ao calor e às duas criaturas que saem da toca para uma fotossíntese de dar cambalhotas para trás. Temos pequeno-almoço à Chef Pinto! Deixamos os lagos à conquista do pico mais alto da jornada. Com 20000 passadas percorremos incontáveis zês de trilho cabreiro, em pedra solta com terra escura até a Cima de Lemma (2348m). O merecido descanso foi partilhado pelo ruminar lento de uma maçã e frutos secos, com aquela magnífica paisagem de 360°. Piz Seleron (o mais alto do vale, 2507m), Monte Cadelle, Piz del Vallone, todo o Val Lungo percorrido no dia anterior, e Alpe Budria que já vinha a seguir. Espera-nos um docinho em forma de crista com mais de 3km, que poria o Kilian Jornet a saltar como se de nenúfares se tratassem. Passeggiata senza prezzo! Para dar mais sal ao giro, deixamos escapar um cruzamento e saímos do trilho AV.

Responsabilizo sem vacilar as marmotas que correm meio tantans até à toca mais próxima quando surpreendidas por nós. O desvio vale-nos um improviso off the treck modo cabra da montanha e, em menos de 40“ chegamos ao destino do dia, Baita Lago. No entanto, Lago nada! O sol ainda está alto, repete-se o ritual da tenda, o corta pão + queijo + chouriço com micro-canivete e em menos de um nada engolimos o jantar com a vontade de um urso. Xixi, cama!

Vou-me lá lembrar qual foi a última vez que me deitei antes do sol.

 

dia três | Baita Lago — Alpe Bodre de Saroden — Tartano — Frasnìi

46°07′44.04″N 09°40′00.57″E

19km • 8h • 1274D-


A chuva não deu tréguas durante a noite toda, mas a tenda não vergou e o céu tinha momentos de azul quando tirámos a cabeça para sentir o ambiente à nossa volta e a brisa fresca da manhã. Vacas por todo o lado, à volta do lago que não é lago, cabras da montanha a espreitar nas cristas e assobios aqui e ali das malucas das marmotas. Tudo perfeito! Foi neste cenário que abrimos a pestana, tana e, com o enguiço nas ossadas de quem dormiu mais de 12h, fazemos o nosso melhor nas tarefas que se tornaram rotina: desmontar tenda, secar tenda, apanha de mirtilos, pequeno-almoço, topless, enfim. Nesta altura as meias parecem um bacalhau seco, tanto no aspecto como no cheiro, o que me leva a acreditar que somos seres destemidos por as voltar a calçar. Hoje espera-nos um dia longo de caminhada, por isso depressa pegamos o trilho em direção ao último e derradeiro Vale Curta. Nos primeiros kms deparamo-nos com uma família de pastores que sazonalmente sobe o vale para alimentar o gado, e deixam-se ficar durante o Verão. O Ernesto pai, o Paolo e a Chiara, filhos e o tio. Gente boa que nos recebe com um sorriso largo e a entusiasmada curiosidade de saber o que raio estão ali a fazer dois portugueses. Quando partilhamos as nossas intenções, custa-nos a perceber o idioma regional, mas não escapou a palavra “bruto” pelo menos três vezes. Aceitamos o elogio que nos dão ao trilho e despedimo-nos com um ou sete “Ciao” alegres e barulhentos à medida que nos afastamos. A preguiça que me levou a não trocar as calças com que dormi, valeu-me a saúde das pernas. O trilho é tão pouco utilizado que a vegetação tapa todos os indícios de que é suposto para gente passar ali. A encosta fica mais íngreme, o nosso ritmo baixa por precaução e tentativa-erro.

Já passava bem mais de 1h que nos tínhamos cruzado com os pastores e pouco mais de 1k estava entre eles. Mais devagar, prosseguimos com um misto de ansiedade e adrenalina boa de quem está a descobrir um caminho novo. Depois de atravessar três riachos bem verticais, o seguinte tem uma seção mais funda que nos obriga a usar as mãos e a progredir com cuidado — modo scrubbing activo! No quinto riacho é que a porca torce o rabo. A água quase não se vê, por uma fenda que desce o vale por mais de 30m. A secção está apoiada por um cabos de escalada que parecem muito seguros, mas a tarefa vai para além dos competências da dupla e, uma falha nestas situações, a dupla passa a single no primeiro erro.

Bruto, pois.

Voltamos para trás na companhia de um elemento que ainda não tinha aparecido durante a caminhada: chuva em barda que molha até ao osso. Haja diversidade. O plano B é um ziguezague íngreme que nos leva até ao fundo do Vale em direção a Tartano. A chuva continua a despejar litros nas nossas cabeças, mas agora o trilho parece uma auto-estrada. Tem degraus, pontes de madeira e por vezes até podes ir lado a lado. Luxos. Não havia nada no corpo que não tivesse molhado e víamos de bom grado encontrar um refúgio para parar, secar e comer. Foi com esta ordem perfeita que passado 2h a descer, vemos uma Baita de manutenção agrícola com porta sem trinco. Paramos, secamos e comemos. Duas horas depois, Tartano esperava-nos com duas lindas cervejas que bebemos com prazer.

Bruto, pois.




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