
Localizada acima de 60ºN, quase a tocar o círculo ártico, a Islândia é uma ilha de outro planeta. Mais próxima da Gronelândia do que o resto do continente europeu, concentra 300.000 boas criaturas descendentes diretas dos vikings. Cerca de 80% vivem na capital, Reykjavik. O resto é natureza pura!
Aperto bem os cordões das botas, ponho a mochila às costas e lá vou à descoberta de um dos mais incríveis trilhos de trekking do mundo.
Este trilho travessa vales dramáticos, glaciares, desertos de lava escura, vulcões activos, rochas alienígenas, cascatas monumentais, montanhas irreais, de todas as cores.
Sim, caro leitor viajante, vais entender porque chamam “a Terra do Gelo e do Fogo”. Laugavegur, Uma Jornada de Outro Mundo.
Bem, vamos por partes.
Antes de me atirar para o trilho há um longo processo de preparação da mochila, roupa, equipamento e mantimentos. Ou seja, enfiar o Rossio na Rua da Betesga. Laugavegur é um trilho linear, em semi-autonomia. São 55km feitos em 4 etapas entre 11km a 15km em que, no fim de cada jornada, espera-me um refúgio de montanha, onde posso aquecer comida (as refeições que carrego) e dormir à campeão (no saco-cama que, por sua vez, também vai no lombo). Para além de roupa para todas as estações e intempéries, carrego 5 jantares, 5 almoços, 5 pequeno-almoços e uma cascata de barras energéticas, frutos secos, desidratados. Depois vem os gadgets: gps, frontal, máquina fotográfica, gorillapod, carregadores, cabos de todas as nações, powerbanks (não há milagres para 5 dias sem energia),
Posto isto, está a nascer um pequeno monstro nas costaças. Tudo pronto!

dia um
REYKJAVÍK
Início de Setembro. Percebo na pele que estou a chegar à Islândia, quando saio do avião e levo logo com uma chapadinha de vento do Círculo Polar Ártico.
Daí até a Reykjavík é um pulinho de pouco mais de uma hora de viagem de autocarro. No checkin, espera-me o Storm (belo indício…) Storm é o nome do tipo da recepção. Islandês simpático, dois de mim com cara de bebé. No aconchego do lar, aproveito para fazer um double-check ao equipamento e o resto da tarde para visitar a capital mais setentrional do mundo. Reykjavik é famosa por sua arquitetura minimal e forrada a chapas de zinco coloridas (não é, mas podia ser). Resisto à visita ao único museu dedicado a pênis (Museu Falológico Islandês), porque tenho coisas combinadas. Deixar-me perder pela cidade, morder o ambiente e empurrar com uma cerveja. 10 paus a jola! Agora passa a ser esta a pesada bitola. É numa das cidades mais caras do mundo que finalmente vislumbro os vikings da tuga que se juntam a mim para esta jornada. Com a bazófia do primeiro dia e entusiasmo do colectivo, demos tudo no jantar. Hákarl (tubarão local fermentado) foi a entradinha mais próxima de WC Pato que comi na vida. Sem vacilar na confiança, atacámos a Kjötsupa (sopa de carne de cordeiro) e o Plokkfiskur (sopa de peixe), e claro uma fresquinha de 10 paus para acompanhar. Foi preciso uma voltinha para desmoer a pança e a alma, até aos lençóis do nosso hostel. Amanhã é um dia longo.

dia dois
REYKJAVÍK - LANDMANNALAUGAR - HRAFNTINNUSKER
Distância: 12 km Ascenção: 470 m
São 6 da manhã! Em frente ao Hostel, esperamos pelo transfer bus. O sono transforma-se em ansiedade, a ronha em denguice e todos querem café! QUEREMOS CAFÉÉÉÉ!!! Pareço ouvir gritar em simultâneo sem ouvir um único som. Está na cara deles e, o mais certo, na minha também. Não passou 1 hora e estava tudo com uma caneca com boost cafeinado na mão, enquanto mudámos de transporte. Uma espécie de bus turbinado 4x4, adaptado às F-Roads agrestes das Highlands. É quando o pneu toca na gravilha que o mundo começa a mudar. O cenário torna-se mais hostil, imenso. Arrebatador.
Viajamos sobre campos de lava e estradas rochosas nas montanhas, ao largo do Vulcão Hekla. Estou seguro que vou gastar os adjectivos para descrever o que vejo nos primeiros dias. Sem aviso ou sinal, entramos na Reserva Nacional Fjallabak, no sudoeste da Islândia: Landmannalaugar. O destino final do nosso transporte. A partir de agora e nos dias que se seguem, só contamos com as nossas pernas, cabeça e o temperamento dos elementos da natureza. Landmannalaugar é inóspito, remoto e um desafio para soletrar. Treinei bastante para dar show! Estar sol é uma sorte. O dramatismo ganha cor, o vento dá um ritmo suave à bandeira da Islândia e mostra-nos a direcção da hot spring. Tudo está bem, quando começa bem.
Depois de uns largos minutos de deleite em banho termal, ocorre-me que ainda temos que arrastar a carcaça 12 km montanha acima. Então não foi para isso que chegámos até aqui?
Após o almoço, sigo para o sul até as montanhas! Bom caminho, Vikings da Tuga! O trilho leva-me por pequenos desfiladeiros, fontes termais fumegantes e cumes de montanhas amarelas, roxas, laranja, eu sei lá. À primeira mão cheia de kms deparamos com alguns grupos a caminhar, casalinhos-dá-cá-mais-um-beijinho, instagramers chalálá e até famílias na descontra. O tempo está perfeito (como nunca vi, nestas paragens) e há muitos trilhos circulares para explorar Landmannalaugar e as icónicas montanhas coloridas. Não faltou muito para termos o trilho só para nós. Tanta montanha, tanto espaço, ar tão puro. Tanto tudo.
Ao final da tarde, chega-se a Hrafntinnusker. A cabana de montanha mais alta em todo o trilho, mais exposta aos ventos fortes e tormentas glaciares, onde vamos passar a noite. Uns encostam na cabana, outros montam tenda. Hoje, ao contrário do que se podia esperar, não passa nada. Uma paz.

dia três
HRAFNTINNUSKER - ÁLFTAVATN
Distância: 12 km Ascenção: 490 m
Depois de um farto Berry Muesli caseirinho!!! no conforto da cabana, como um bonito caracol, meto os cornos ao sol. As condições atmosféricas também não são deste mundo. O vento a 5 km/h nem muda o penteado e o sol já vai alto com uma pincelada leve em nuvens para o azul não ser bruto . Put a cream, roupinha a fazer pandam e recupero o singletrack de cascalho-Laugavegur com aquele conforto nas pernas de que já não há muita montanha para galgar. Desço as ravinas de Jökultungur com centenas de vapores termais e piscinas de lama e carga generosa de enxofre pelas narinas. A atmosfera é surreal. A paisagem oferece vulcões até onde os olhos alcançam, caminhos lunares, glaciares, alienígenas. – Viram por aí o John Snow? – pergunta um amigo caminhante que se cruza no caminho. É fácil viajar dentro desta viagem. O ramram de um passo a seguir ao outro dá tempo para absorver a natureza que nos envolve, todos os pequenos detalhes. Dá tempo para conversas longas com os amigos do trilho, para estar sozinho, a vaguear pelo pensamento.
“We do have enough time. Life is long, if we listen to ourselves often enough, and look up.” — Erling Kagge
Não sei se é por já estar a descer há umas horas, mas dou por mim a respirar profundamente, sem esforço. O ar não podia ser mais puro. O passo vai certinho e já se vê o lago de Álftavatn. É um espelho de água imenso. Mas antes de o alcançar espera-nos um desafio que nos vai tornar o melhor amigo das Crocks de todo o sempre. Um rio. Ao contrário dos outros, este não dá para saltitar de pedra em pedra. É aqui que vamos ao castigo: Tiro as botas. Pelo sim pelo não, saltam também as calças. Calço as chanatas, pois vai doer! A água que nos gela os pés vem dos glaciares Mýrdalsjökull e Eyjafjallajökull, que cerca a área de Álftavatn. Já estamos no final do Verão e a proximidade dos glaciares não deixam que a neve permaneça no trilho. Em caso de mau tempo, nevoeiro e chuva, este troço pode virar um pesadelo. Cruzo-me com umas mariolas em forma de memorial de ilustres caminhantes islandeses que morreram por aqui. Ironicamente a pouco mais de um km do refúgio. Esta passagem leva-me a concluir que nunca, mas nunca devemos subestimar a montanha e, neste caso em particular, não fazer o trilho em fevereiro. O último que se lembrou disso, está ali na fotografia à volta dos calhaus.
Ao anoitecer, crescem os tons de laranja com os reflexos da água do lago. A trupe, já de banho quente tomado, encosta-se na madeira do refúgio com o mais que merecido-delicioso Lentils curry dal with spinach com 1170 kcal, para repor os níveis e mimar o palato. Que bem se está no campo!

dia quatro
ÁLFTAVATN - EMSTRUR
Distância: 16 km Ascenção: 40m
Ao contrário do que era de esperar, continuamos a ter sol. Que Islândia é esta…? A maltinha acorda devagar. Hoje não há pressa de arrancar, pois o trilho é fácil, o tempo está bom e, como dizia António Machado, “O caminho faz-se caminhando”. Esqueceu-se de dizer “nas calmas”. Depois de um vibrante Chocolate muesli e lavar os dentes, esse o mote do dia!
Nos primeiros kms, as pernas ainda estão frias, mas as vistas já vão quentes. À minha frente está o icônico vulcão verde de Stórasúla. É um verde que não existe em mais lugar algum. O Verde-Laugavegur. Depois de batizar um verde, tiro as botas novamente, pois há um rio para atravessar. Este, amigo do seu amigo, não molha acima do joelho. Avante vikings da tuga, que são boas notícias!! Depois da estucha tira-põe-bota-arregaça-calças-molha-pé, até sabe bem o fresco nas ossadas. Ao subir o vale, deparo com uma vista inacreditável para os desertos negros de Mælifellssandur. Parece Mordor, da Terra-Média Tolkiana. Segue-se outro vulcão. Ainda mais antigo, ainda mais incrível, mais verde-Laugavegur. Hattfell, o vulcão mal humorado. Pois, tem o topo côncavo que faz lembrar as sobrancelhas de quem lhe deve dinheiro.
Com a tranquilidade do vento, entro na região de Emstrur. Antes de chegar ao refúgio, onde a maltinha passa a noite, deixo o trilho oficial e aponto azimutes em direcção ao magnífico canyon Markarfljót. Não há melhor cereja para colocar em cima do trilho, um abismo da natureza a cortar quase 200 metros de rochas até chegar ao rio. É, sem dúvida, um dos canyons mais impressionantes da Islândia.
Em Emstrur, como em todos os outros, opto por acampar. Lá fora não estou menos confortável. Já dizia o velho Herodes, “Não há mau tempo, só mau equipamento”. Desta forma estou mais perto dos elementos. Mais vivo!

dia cinco EMSTRUR - ÞÓRSMÖRK
Distância: 17 km Ascenção: 300m
O trilho segue para leste pela paisagem vulcânica do costume, a descer até ao rio Syðri-Emstruá, que passa por um canyon profundo com a água a correr violentamente. São litro-toneladas de água selvagem vinda do grande glaciar Mýrdalsjökull que se eleva a poucos kms de distância. A ponte de madeira assegura o pé seco e o corpo intacto, pois seria intransponível.
Falta-me talento para colocar em palavras a imagem que está à frente dos meus olhos. Por baixo dos pés assenta um platô de dimensões astronómicas, à frente um desfiladeiro profundo onde os rios Syðri-Emstruá e Markarfljót se encontram, alimentados pela água do degelo que escorre dos glaciares Mýrdalsjökull e Eyjafjallajökull. Belo spot para almoçar!
Então, caro leitor. Estás a dar-te bem com estes nomes do arco da velha? Hoje até sesta houve. O sol bate sem queimar, o vento suave na cara e os mirtilos apanhados na hora como sobremesa deram o balanço perfeito para uma power nap.
Após várias horas de caminhada pelo deserto islandês e vales verdejantes, Þórsmörk está mais perto. Os míticos bosques de Thor, repleto de florestas de bétulas árticas e flores silvestres de várias cores. Sim, ouviram bem. FLORESTA!! Apesar de anã, é mesmo verdade! Há dias que não se avistava uma árvore e, de repente, aparece esse bicho exótico em frente dos olhos. Os islandeses têm o hábito de soltar a laracha: O que fazes se estiveres perdido numa floresta islandesa?
Pausa dramática… Põe-te de pé! É comum encontrar ovelhas nos mantos verdes da região de Þórsmörk, antes do Réttir, o ritual anual da recolha das ovelhas para o inverno.
Na Islândia há quase três vezes mais ovelhas que seres humanos. São cerca de 800 mil exemplares de lã branca, a pastar nutritivas gramíneas e bagas nos mais remotos recantos do interior do país. Setembro é sinónimo de Réttir, o rodeio nacional onde a comunidade a pé, com cavalos islandeses ou, mais recentemente de moto-quatro, recuperam os rebanhos das montanhas e vales, auxiliados por cães pastores. São dias e dias de esforço extenuante e, por vezes, famílias inteiras aparecem para dar apoio. Como manda a tradição, é seguida pela triagem em réttirs: currais circulares com secções radiantes onde os pastores separam seus rebanhos. É uma grande festa campestre, onde amigos, familiares e vizinhos se reúnem para celebrar, fazer piquenique ao ar livre e ajudarem-se uns aos outros a preparar as suas ovelhas.
O nosso dia acaba no coração dos cenários dramáticos da Guerra dos Tronos, cercada por encostas Verde-Laugavegur® (já fiz a patente!) de musgo sob dois imponentes glaciares (agora poupo-vos o nome). Estou com aquela sensação dividida entre a alegria da conquista de ter terminado esta jornada vivo, com a melancolia ártica de que está prestes a acabar... O corpo e a mente estão afinados para fazer mais 50 ou 100 km, caraças. E agora?
Este é o fim oficial do mítico, e agora inesquecível, Laugavegur Trail.
É hora de celebrar com cervejas a 10 paus. Na loucura, hoje bebo duas!

dia seis
ÞÓRSMÖRK
Dia livre: até aparrar o dia todo no sofá do Vulcan Hut é de valor.
Acordo pela fresquinha com uma vontade doida de lamber o último Chocolate Muesli até ao tutano. Vou sentir saudades disto. Não pelo muesli em particular, mas pela garantia de que se estou a comer isso é porque ainda estou na Islândia. Os Vikings da Tuga dispersam. Cada um vai à procura do seu espaço e tempo para descomprimir. Eu, com mais um molho deles, vamos descomprimir a galgar mais um monte. Um bonito, parar variar.
Escolhi o Monte Valahnúkur. Na dúvida, é sempre para cima. Coberta de musgo até aos ossos, Valahnúkur não tem mais de 500m de altitude, mas dá luta. Hoje a chuva chegou para poder segurar a Islândia pelos cornos. Agora sim, temos os elementos a cantar em sintonia. Sol em barda, check! Chuva feia, check! Vento glacial à bruta, check! Lá em cima dou o último vislumbre ao delta que se entende até ao mar. O caminho de volta é por ali.

dia sete
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Se tudo correr bem, há bacalhau cozido para o jantar
LAUGAVEGUR | Uma Jornada do Outro Mundo Notas de viagem publicada em novembro de 2022, na Revista Volta ao Mundo. @revistavoltaaomundo @merrellportugal
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